terça-feira, 1 de setembro de 2009

A QUESTÃO É: O QUE É UM MANAH-MANAH?

Acordar é se levar muito a sério. Então, há sempre alguns cinco segundos nesse salto, no topo da gravidade zero, entre dormir e acordar, ainda como nos sonhos, quando tudo ainda se contrai e tudo cabe em nossa lógica, a despeito de que lógica seja, onde já não há diferença entre sonho e vigília e salto, pois percebemos estar sempre usando, em qualquer desses momentos, o mesmo artifício de acreditar sermos aquilo que parecemos ser. E tudo que conhecemos e que não conhecemos nos cabe. E mesmo quando esses cinco segundos possuem um tema, na verdade possuem vários temas.

Pois o que vou contar são esses cinco segundos com temas, acontecidos comigo, nos quais eu lembrei ter brigado seriamente com meu grande amigo escritor argentino Castelo. Na noite anterior, eu havia estado no mesmo bar que ele, na mesma roda de amigos e ouvido suas narrações de algumas de suas histórias. O motivo da briga: eu lhe disse o que realmente acho de sua obra.

No primeiro dos cinco segundos, Castelo já me irritava. Não suportava me ouvir dizer que sua prosa não pertence a sua poesia, o que é o problema. Sua poesia é poesia, um desvelar consciente de não solucionar. Mas sua prosa não é engajada nas coisas, como se não pudesse tratar delas, alinhar as coisas nos contos, sem feri-las. Castelo não vê as coisas, Castelo ouve coisas. Então, inventa apenas absurdos, soluções para a realidade, com a pretensão intelectualóide instituída a partir de Cortazar, Borges e outros meros deformadores, de, por puro desprezo pelo real, tentarem outros reais, irritantemente ilógicos. Isso me irritava (pois o uísque me irritava), Castelo me irritava, mandei-o à merda e ele me convidou a ir com ele. Isso tudo no primeiro dos cinco segundos.

No segundo seguinte, eu me descobriria um total boçal por pensar dessa forma, mas o ambiente se transformou em tão outro, que eu já me vi rindo com Castelo de uma de suas idéias ainda não-conto. Pois era tão absurda e ao mesmo tempo tão real (dissemos: "como a morte!"), que ríamos (espantoso não rirmos da morte). Havia pensado em uma personagem, uma senhora de idade, que ouvira falar das maravilhas e promessas da reciclagem e começara a levar para casa todo o lixo que encontrava nas ruas. Em alguns anos, havia entulhado o apartamento até o teto e, não suportando mais o pouco ar restante, foi morar na casa da filha. Todos ríamos e alguns gritavam para Castelo, em uma brincadeira bem particular do grupo: "trobacodelúrio!". Lembramos depois de um de seus contos, em que uma rua havia sido tomada de baratas a ponto de não se poder ver alguns carros e muros. As baratas vinham do apartamento de um doido de capa preta que as criava no quarto, alimentando-as com leite condensado embebido em absorventes íntimos. Envenenadas por um vizinho revoltado, elas brotaram pelas janelas. No dia seguinte, os moradores varriam e carregavam em centenas de baldes toneladas de baratas. "Trobacodelúrio!". Entre outras histórias. Castelo para mim ali era um gênio.
No terceiro dos cinco segundos, Castelo pouco se dirigia a mim. Eu estava no bar e na roda, mas não era exatamente seu amigo.. Era amigo de um amigo, e aí já apenas leitor. Não me deslumbravam nada esses grupos em que cada um sabe ser o melhor dentre os outros e com mais futuro artístico. Dali, apenas eu podia pensar isso com propriedade. E Castelo não era meu escritor preferido.
No quarto segundo, eu estava no bar e na roda, mas porque havia me levantado de minha mesa para tentar descobrir quem era o causador daquele burburinho e me intrometido naquelas pessoas que gritavam de vez em quando uma palavra que eu não conhecia. Tive repulsa ao seu conceito de arte. Não conhecia nem de rosto o escritor consagrado que estava ali.
No último segundo, eu jamais havia saído de casa para bar nenhum. Havia passado a noite anterior em casa, bebendo sozinho, lendo Cortazar e organizando minha coleção de recortes de jornal.
Acordei e durante algum tempo antes de estar mesmo acordado, pensei naqueles cinco segundos. Não preciso dizer que para contá-los agora aqui, tive de inventar alguns. Ninguém em sã consciência consegue se lembrar de tantas coisas passadas em apenas cinco segundos.
Ainda sentado na cama, descobri ter dormido em cima de meus recortes, e que um deles estava colado em meu rosto. Peguei-o e li o título da matéria: "Lixo até o teto". Pensei sobre textos e sobre conteúdos de textos. Pensei por mais alguns minutos. Depois disso, a questão era: todo texto precisa necessariamente ter um título?


Victor Paes

Victor Paes é escritor, ator, mestre em Poética pela UFRJ e editor da revista e da editora Confraria do Vento. Publicou em 2007 o livro de poesia O óbvio dos sábios e hoje prepara seu primeiro livro de contos. Tem publicados seus textos em revistas e sites como Cronópios, Germina, entre outros. Escreve também para teatro e já teve montadas algumas de suas peças, dentre elas Mara em um quarto, As três Marias, que participou do projeto Nova Dramaturgia, sob direção de Roberto Alvim, e Os cálices do deus, premiado no Concurso Rio Jovem Artista, da RioArte. Como ator, trabalhou em diversas montagens e projetos, como o grupo de poesia Arranjos para Assobio. Publica o blog victorpaes.blogspot.com.
www.confrariadovento.com

Andando na Noite

A João do Rio e a Márcio-André
poetas andantes


Andando na noite, pelas ruas do centro, com o jornalista Antônio, percebi como se diferem as ruas quando no negrume e quando na claridade. Certas ruas até mesmo na manhã são o que são na noite, outras são estranhas de si mesmas já antes mesmo da noite, já um pouco antes do ocaso. Por exemplo, o que tem a Rua do Ouvidor da manhã que ver com aquela percorrida na noite? Não falo bem da alternância das pessoas que a freqüentam, ou do clima humano propriamente, mas de como a rua por si parece deixar que esse clima se transforme. Ninguém saberia por que, certos dias, essa rua nos afugenta fatigados de uma manhã pedregosa e, quando na noite que dá seqüência ao incômodo, é capaz de nos acolher tão bem sobre as mesmas pedras. Digo isso ainda que nós estejamos constantes na disposição do espírito. A verdade é que, por mais de uma vez passando por ali, não me dei conta de que estava na Ouvidor até que algo de fora, da rua, provocasse meu ânimo e o afinasse tão bem ao seu, como se me tocasse. Pois, nesses momentos, era a rua que me atravessava e não eu que atravessava a rua. Aliás, com o tempo, soube que somente podia atravessá-la nesta condição: em tendo sido atravessado por ela primeiro. Depois dessa imbricação de travessias, ela me aparecia em todo seu brilho e evocação. Questiono-me, sob o domínio dessa experiência, se não é isso que ocorre em verdade com todas as ruas.

A pergunta que me surge e compartilho com todos para salvar essa tese é: não são as ruas que permitem e orientam a travessia humana na cidade ou mesmo se cá ou lá, em sua metragem, podemos nos assentar e conversar no banco ou no bar? E também onde, afinal, nos deixam - sob sua guarda - fixar nossa boemia? É-me permitido responder algo após tanto pensá-las nos meus pés (ou elas se pensarem por eles). Respondo que, ainda muito mais que a atravessá-las, somos convocados e orientados por elas a deitarmos ou não, aqui ou ali, nossa morada. Isso encerra, na verdade, uma questão muito mais radical, pois são as ruas que determinam onde devemos morar, de acordo com a concessão que fazem às casas, sendo necessário que essas sejam por aquelas admitidas antes mesmo de nos decidirmos onde iremos ficar. Passeemos um pouco pela cidade e admitamos que são as ruas que nos constroem as casas e nos permitem fazer-lhes moradia. Por certo, perceberemos que não são as casas, pelo nosso desejo citadino, que ambientam as ruas, forçando-as ao que não são, pois muito antes disso foram as ruas que as acolheram ao seu modo de ser. As casas são apenas as manifestações e concretizações das ruas na sua tarefa de aparecer. A rua na sua missão de aparecer arquiteta suas casas e vãos. Quando habitamos as casas, passamos a ter participação efetiva na alma da rua que nos aceitou, porque de muito antes nossa alma já ali habitava e, certamente, só nos faltava a escuta de um convite seu, ou um encontro. Assim estou certo de que as ruas não são uma conseqüência da cidade, nem um acidente entre edifícios, senão o que permite de fato a cidade existir. As almas das ruas incorporam as cidades, as cidades são os corpos das ruas, as ruas é que habitam no homem.

Ronaldo Ferrito, 28/03/209

RONALDO FERRITO é poeta, ensaísta e um dos editores da Confraria do Vento, revista de Textos Literários da qual também é colunista. Participou de algumas antologias de contos e poemas, como a Asas e Vôos (Guemanisse, 2006) e publica com freqüência em outras revistas eletrônicas.